Morrer não foi muito
difícil. Um segundo de desatenção no trânsito e um carro cortou o caminho da
minha moto. A queda me custou alguns ossos quebrados. Nada de novo para um
motoqueiro experiente, mas, sendo uma via movimentada, em segundos minha cabeça
foi esmagada por um caminhão. Um fim esperado para alguém acostumado a uma vida
de dificuldades.
Minha família não era
especialmente pobre quando eu nasci. Meu pai tinha um emprego razoável e deu
conta de colocar dois dos meus irmãos na faculdade. Quando eu tinha uns dez
anos, no entanto, minha mãe descobriu que ele a estava traindo e o colocou para
fora de casa. A partir daí, as coisas ficaram muito mais difíceis.
Minha mãe passava o
maior tempo fora de casa em empregos que simplesmente não pagavam o bastante
para nos manter e caçando um novo marido em bailes e bares. Obviamente, o pior
lugar possível para se encontrar um novo marido é em bailes e bares. Nem
preciso dizer o que aconteceu depois disto. Com um ambiente tóxico em casa e falta
de dinheiro crônica, fiz o que podia fazer e encontrei um emprego numa oficina
mecânica aos doze anos. Com quatorze anos, mudei de emprego e me tornei um
garçom numa lanchonete, e quando meu corpo estava grande o bastante para
alcançar o chão em cima de uma moto, aprendi a dirigir e me tornei um motoboy,
porque assim podia ganhar mais dinheiro. Uma vida extremamente ordinária, mas
eu não tinha desistido dos meus sonhos.
Desde pequeno eu
adorava histórias. A paixão começou com a televisão, onde as histórias simples
dos desenhos animados abriram o caminho para histórias mais complexas em
histórias em quadrinhos, filmes e até que ocasionalmente encontrei os livros da
biblioteca da escola por volta da sexta série. Quando minha situação familiar
se complicou, as histórias contidas em livros e histórias se tornaram o meu
refúgio contra a dor e a infelicidade. Histórias eram minha força, minha luz no
fim do túnel, aquilo que dava sentido para a minha vida. Foi apenas natural então
que meu sonho fosse me tornar um escritor e criar histórias que também
trouxessem felicidade para outras pessoas.
Não foi uma estrada
fácil, sem dinheiro para uma educação de qualidade e sem contatos no ramo, era
praticamente impossível. Eventualmente, no entanto, consegui publicar
alguns livros por uma editora menor. O dinheiro não era o bastante para
sobreviver daquilo, e meu trabalho como motoboy continuou durante dez anos da
minha vida adulta para pagar as contas no fim do mês. Mas eu estava feliz, pois
meu sonho era me tornar um escritor e trazer felicidade para as pessoas, e
qualquer ilusão de que alguém como eu poderia se tornar um escritor famoso
nunca passou pela minha cabeça. E aí um dia eu morri.
***
Quando recobrei a
consciência, imediatamente soube que estava morto e tinha ido para o céu. A
primeira dica foi a minha última memória antes de chegar aqui, a roda do
caminhão atingindo a minha cabeça. Minha mente sabia muito bem que era
praticamente impossível sobreviver naquela situação. O que me levou para a segunda dica. Mesmo
que por um milagre conseguisse sobreviver a algumas toneladas de peso esmagando
meu crânio, eu acordaria em uma cama de hospital com meu corpo completamente
quebrado pelo acidente. Mas meus braços e pernas estavam em excelentes
condições e não havia sinal de dor. A terceira e derradeira dica é que havia um
anjo sorrindo para mim.
Pensando em
retrospecto, a primeira e a segunda dicas são irrelevantes em comparação com a
terceira, mas foi nessa ordem que meus pensamentos seguiram naquele momento.
Talvez Mariel não seja a única cabeça de vento nessa história.
─ Ah, eu morri – eu
disse estupidamente depois de suspirar profundamente e fechar os olhos.
─ Algum
arrependimento?
Eu abri meus olhos e
a encarei. Era exatamente como nas imagens que vi na escola dominical
antes de começar a trabalhar. Asas, auréola,
roupas brancas, cabelos loiros e olhos azuis, beleza incrível, todo o conjunto
angelical. A única diferença é que ela era uma mulher.
─ Heh, não. Eu fiz o
melhor que pude e mesmo que por pouco tempo, realizei o meu sonho. Mas olhando para você agora, acho que não devia ter usado o ditado
“discutir o sexo dos anjos”, não é mesmo?
─ Ah, sim. Hehehe. É
um dos muitos pontos que vocês entenderam errado sobre a natureza do universo.
Antes que me esqueça, meu nome é Mariel ─ ela me informou com um sorriso.
Um anjo pode esquecer
coisas? Yeap. Mas na época achei que fosse só uma brincadeira para me deixar à
vontade depois de morrer de repente. Em vez de perguntar sobre isso, comecei a
prestar atenção onde nós estávamos. Aparentemente, em lugar nenhum. Era
um vazio feito de alguma coisa branca, e a sensação de estar pisando em algo sólido não existia, mas ao mesmo tempo não havia a sensação de estar caindo. Quando
tentei dar um passo, consegui me mover nesse espaço, mas não senti aquela força
do chão contra a sola do pé. Imaginei que devia ser porque eu era atualmente
apenas uma alma, e não um corpo físico, e por isso a ideia de me movimentar é
que importava, e não atualmente mover minhas pernas. Testei imaginar o
movimento e consegui fazer meu corpo flutuar na direção que quis.
─ Oh, você aprende
rápido. Como esperado de alguém que já foi um cientista ─ Mariel comentou
observando eu me adaptar a esse corpo espiritual.
─ Huh? ─ Minha cara
deve ter sido realmente estúpida nesse momento ─ Eu fui um escritor, e
trabalhei como motoboy, garçom e mecânico para pagar as contas, mas nunca fui
um cientista.
─ Sim, sim. Eu quis
dizer que você foi um cientista numa vida passada em outro mundo, por isto a
sua encarnação atual possui um pouco de natureza inquisitiva e talento para as
ciências em geral.
─ Oh, ok, então vidas
passadas existem? Espera. Espera. Explica isso direito. Você disse “outro mundo”,
certo? Existe mais de uma Terra? Tipo realidades paralelas? Se sim, tem uma
onde eu sou um super-herói?
Você pode mesmo me
culpar por ficar excitado com a ideia? Eu passei a maior parte do ensino básico
e começo do ensino médio fantasiando que um dia ia ganhar superpoderes e viver
uma vida como a do Homem-Aranha, indo para a escola de manhã, salvando o mundo
à tarde e trabalhando de noite para pagar as contas no final do mês.
─ Hmm... Não ─ e mais
uma vez minhas desilusões adolescentes foram destruídas. Isso é cruel, não dê
esperanças a um sonhador só para esmagar elas no momento seguinte, Mariel! ─ Só
existe uma Terra, e só existe um de você no universo. Cada alma é única e não
pode existir em dois lugares ao mesmo tempo. Mas é verdade que existem outras
realidades além da que você conhece. Trilhões delas, na verdade, cada uma delas
única e povoada por almas que também são únicas. Ah, e apesar de você nunca ter
sido um super-herói, em uma vida passada você foi um arqueiro incrível que se
tornou um herói do povo. Se você tivesse usado o arco nessa última encarnação,
seu talento seria o bastante para ter se tornado um medalhista olímpico.
─ Eita! Esse é um
monte de informação de uma vez só. Heheh, arqueiro herói do povo, hein? Tipo um
Robin Hood? Tão legal! ─ No meu coração, eu a perdoei por ter esmagado minhas
esperanças anteriormente ─ Mas ei, Mariel, essa já é a segunda vez que você
fala de talento relacionado com
minhas vidas passadas. Como é que funciona isto?
Ela colocou um dedo
no queixo e pensou por alguns segundos antes de responder.
─ Hmm... Certo,
quando você passa pelo processo de reencarnação, um dos passos é que a sua
memória é apagada e convertida em talentos para as atividades que você
desenvolveu nas vidas passadas, e então adicionadas como uma espécie de memória
muscular da sua alma. Se você passar várias vidas em determinada atividade,
como um pintor ou soldado, você pode desenvolver um talento enorme para essas coisas.
─ Então é assim que
caras como Da Vinci e Alexandre, o Grande acontecem, hein?
─ Esses são...? ─ Ela
estreitou os olhos cheios de dúvida. “Certo” ─ pensei, ─ “anjos não são
oniscientes, e ela comentou que existem trilhões de mundos diferentes, é demais
esperar que ela saiba de detalhes históricos da Terra”.
─ São um grande
artista e um grande general da história da Terra, respectivamente, com feitos
que marcaram o mundo por séculos e milênios depois da morte deles. Então, dessa
vez, como me dediquei a escrever e trabalhei como motoboy a maior parte da
minha vida, vou adicionar um pouco de talento para escrever e pilotar motos na
minha alma, certo?
─ Sim! Você também
vai adicionar um enorme talento para perseverança contra adversidades na sua
futura personalidade ─ Mariel me respondeu com um sorriso. Mas essa última
parte não me faz muito feliz, é como desenvolver resistência contra a dor
através de experiências dolorosas. Obrigado, mas não, obrigado.
─ Bom, e o que
acontece a partir daqui? Eu vou reencarnar de volta na Terra ou em outro mundo? Se
minha opinião contar para alguma coisa, prefiro algum lugar com magia ou
superpoderes, se é que eles existem ─ e as minhas desilusões adolescentes ressurgiram!
─ Heheheh, quão
afortunadas são suas condições ao nascer dependem do seu carma
acumulado, mas eu posso fazer você renascer num mundo com magia e cheio de
coisas fantásticas. Ok! Considere um presente para comemorar meu primeiro dia
no trabalho! ─ ela declarou com uma atitude feliz.
─ Eh?! Primeiro dia
de trabalho? Hã, quer dizer, parabéns! ─ Eu fiquei confuso por um momento, mas
no fim lembrei-me de demonstrar cortesia própria para a situação ─ E obrigado
pelo presente. Mas existe algo como empregos no céu?
─ Ah, mais ou menos,
eu sou como você: uma alma reencarnada. Se você acumular muito carma positivo
através das suas múltiplas vidas, você pode se tornar um anjo como eu ─ ela
colocou a mão no peito, obviamente orgulhosa. Mariel, orgulho é um dos sete
pecados capitais, você vai acabar sendo expulsa do céu assim! ─ Como eu acabei
de ascender, você é a primeira pessoa que ajudo a passar pelo processo de
reencarnação.
─ Oh, isso é
incrível! Parabéns por ascender como um anjo, Mariel! ─ Ela é uma boa garota,
até vai me ajudar a ir para um mundo legal com magia e superpoderes, então essa
quantidade de elogios é algo que ela merece. Chega de tédio no dia a dia, agora
vou poder presenciar histórias legais se desenrolando o tempo todo. Yay!
─ Heheh! Ok, vamos
começar o processo de reencarnação! Se prepare para uma nova vida! ─ as asas
dela se moverem para cima e para baixo em resposta a empolgação.
─ É isso aí! Irá!
Em retrospecto, toda
essa empolgação só podia ser um sinal de que alguma coisa ia dar errado.
***
A primeira luz que
tocou meus olhos foi a de algumas velas espalhadas pelo quarto. Apesar de elas
só adicionarem uma iluminação leve, eu podia ver claramente na penumbra, embora
fosse muito difícil diferenciar cores nesta situação. Um rosto firme e másculo,
com barba levemente por fazer, sorria para mim e dizia algo que eu não
conseguia entender. Será que esse é meu pai? Ele parece humano. Tentei mexer
meus braços e pernas, e confirmei que eles estavam ali, mas eles não me
obedeciam direito.
Meu pai me colocou
nos braços de uma mulher deitada na cama, será minha mãe? O rosto dela é lindo!
Eh?! Opa, opa, opa! Que orelhas compridas são essas? Traços delicados, orelhas
compridas, isso é uma elfa! Elfa! Parabéns, papai, você casou com uma elfa!
Espera, isso quer dizer então que sou um meio-elfo? Uma paixão inter-espécies?
Heheheh, essa deve ser uma grande história. Mal posso esperar para crescer e
ouvir ela de vocês, papai, mamãe! Heheheh.
Eh?
Espera, porque eu me
lembro de tudo isto? Mariel, a minha memória não deveria ter sido apagada? Hã?
Quê? Ei!? Mariel, você está aí?
Como se respondendo
as minhas indagações mentais, o tempo parou e meus pais ficaram congelados com
a mesma expressão feliz pelo filho recém-nascido. Num canto da sala, irradiando
luz sagrada numa cena incrível, estava Mariel. O rosto era o de alguém que
parecia que iria chorar a qualquer momento.
─ Me desculpa, ─ ela
disse caindo no choro ─ eu fiz besteira.
Um anjo chorando na
frente de um recém-nascido que mantém uma cara séria é algo tão absurdo que
duvido que já tenha acontecido em qualquer um dos trilhões de mundos paralelos
que existem no universo.
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